terça-feira, outubro 2

Hora de arrumar as malas


Khanimambo

Depois de tantas experiências e encontros, está na hora de arrumar a mala para voltar.

Encontrar espaços para as novidades.

Descobertas e sentimentos que antes não tinham lugar, porque nem sabia que existiam, agora preenchem a mala.

Ela está deliciosamente pesada.

Cheia de novos amigos.

Devo agradecimentos a muitos. Pessoas que rechearam essa estada com conversas, aprendizados e novos mundos.

Claire e João, um especial Khanimambo!

Estamos juntos...

Coisas antigas também vão voltar. É verdade que estão diferentes e portanto, precisam de novos espaços.

Decidi colocar tudo junto na mesma mala.

O novo perto do que já conhecia.

O diferente do lado do que reconheço.

Mistura boa. Mistura que soma.

Combinação explosiva de vida!

Essa mala seguirá viagem sem ser fechada.

Tem coisas que não tem fundo e nem fim, não tem fecho e nem cadeado.

Deixarei aberta, sem medo que as coisas escapem, mas como forma de declarar que tem espaço para novas descobertas e aventuras...

Por hora, esse é meu último texto do blog.

Deixarei de digitar tantas letras na expectativa de prontos encontros, ao vivo e em cores.

Agradeço, todos os recados e e-mails.

Foi muito especial sentir que estavam perto de alguma forma.

" ... e assim chegar e partir...
São só dois lados da mesma viagem
O trem que chega é o mesmo trem da partida
A hora do encontro é também despedida
A plataforma dessa estação é a vida..."

Khanimambo, Moçambique!

terça-feira, setembro 25

Um deserto nas margens do Oceano Atlântico


Khanimambo

Cerca de 1.8 milhões de pessoas vivem na Namíbia. Sendo que 1.2 milhões moram na região norte perto de Angola.

Hoje a economia se movimenta pelo turismo. Há cerca de 10 anos a criação de ovelhas deu lugar às trilhas, campings e outros eco desafios do deserto.

As razões dessas mudanças são fáceis de perceber.

Um bom período de chuva por essas terras é o equivalente a um dia de chuva em São Paulo.

Já faz 6 anos que a água não cai do céu.

Além disso, na Namíbia, existem 5 diferentes ecossistemas. A paisagem muda a cada piscar de olhos. Saem as dunas, para entrar montanhas, cactos e grandes canyons.

Para sobreviver a temperaturas que podem chegar a 45C, as plantas incham seus caules para armazenar água. Outras, conhecidas como adormecidas, parecem mortas por anos enquanto esperam a próxima chuva.

Os homens também se adaptaram. Os Buchemens, como são conhecidos, podem ficar dias sem água e sem comida enquanto caçam.

Um país distante do Brasil por um oceano, ao mesmo tempo próximo em muitos aspectos.

Por aqui, a música, a dança, a conversa não são somente para os momentos de celebração.

É uma alegria que faz parte do jeito de se viver no calor do deserto.

Khanimambo

We are not on holiday. We are in safari!


Khanimambo

A aventura começou na capital, Winduek.

Atravessei o deserto num caminhão com mais 12 europeus. Percorremos mais de 6.000 km para dar a volta completa no país.

Foram noites a céu aberto. Sem teto. Um forma de encurtar a distância entre os sonhos e as estrelas.

Noites fechados nas barracas, escutando leões e elefantes rondando por perto.

Para aquecer a comida e o corpo, um fogueira toda a noite. Histórias, lendas e prosas de toda a parte do mundo quebravam o silêncio.

A cada dia uma nova paisagem. Um novo cenário para a aventura.

Uma parada e encontramos Franchesca na beira da estrada. Ela faz parte da tribo Herero e curvada perto do asfalto, costurava tecidos como quem tenta juntar partes perdidas de sua história.

Ao final, como num passe de mágica, me entrega uma boneca.

Sua imagem e semelhança.

Levo para o Brasil uma parte de sua história que ficará sempre na minha lembrança.

Mais uma parada e fomos ver os antigos desenhos dos Bushmens gravados nas pedras. Chamile, 21 anos, nos indica a rota.

Subimos e descemos montanhas como quem tenta ler e ver a histórias nas pedras.

Ao final, ela disse até logo, em Damara, um das das línguas locais:

- ! Zoaus !!

Além das letras, saíram sons e estalos de sua boca. Parece mais um canto do que uma simples despedida.

Mais um pouco de estrada, noites no meio do deserto e na fronteira com Angola encontrei Mococó.

Assim como Chamile, também tem 21 anos. Ela é Himba e vive com sua família dentro do deserto.

Tem uma filha que ainda não tem nome:

- É difícil dar nome aos filhos. Estou esperando um sinal.

Toda a manhã pinta seu corpo com um pó vermelho:

- É para fica bonita...

Os Himba acreditam no poder do que podem ver. E sua força vêm do fogo, por isso toda noite levam um pouco de fogo para dentro de suas casas para abençoar e proteger seu sono.

Para conhecer um país é preciso conhecer seu povo.

A cada dia tinha a certeza que estava no fim do mundo. Até que encontrava pessoas andando, animais selvagens, plantas e percebia que o lugar estava cheio de vida.

Mais do que uma aventura ou um safari, esse foi um tempo de conhecer um país, seu povo, seus costumes e sua terra.

Thank you, my friends!

We had the best in Namíbia.

All of you have a place and friend waiting for you in Brazil.

Don't forget: Save water, drink beer!


Khanimambo

Quem disse que não podemos voar?


Khanimambo

No começo uma sensação estranha.

Um medo que alguns segundos durassem horas.

O avião era pequeno e quase sem perceber já estava a mais de 4.000 metros de altura.

As dunas, mesmo de longe, não perdem sua imponência. Seguem grandes, mostrando quem dá o tom do deserto.

O oceano parece ainda mais infinito. Na linha do horizonte o sol já caminhava para o descanso, deixando as pequenas casas e poucas plantas douradas.

Nesta altura você tem poucas alternativas:

Seguir viagem ou tentar uma forma diferente de chegar em terra firme.

Foi o que fiz!

Depois de testar ganchos e cordas, mexi meu corpo em direção a única porta recém aberta.

O vento estava forte e soprava em direção contrária ao meu corpo.

Era o último momento para decidir se seguiria ou não em frente.

Mas, a vida nem sempre nos dá o privilégio do tempo da dúvida. Segui não escutando os meus medos.

Foram 35 segundos de queda livre a mais de 140 quilômetros por hora.

Lembro do vento.
Lembro da sensação de queda.
Lembro da adrenalina.
Lembro da vontade de gritar.
Lembro do silêncio.
Lembro e nunca vou me esquecer da sensação de liberdade!

Khanimambo

domingo, setembro 9

Hora de dar uma parada





Khanimambo

Depois de muitas estradas de terra batida, está na hora de dar uma parada na rota.

Rever caminhos, conhecer novos e principalmente curtir minhas férias!

Volto daqui a duas semanas com novidades da África do Sul e Namíbia.


Khanimambo

sexta-feira, agosto 31

A hora do voto




Khanimambo - Dessa vez, nós que acordamos as galinhas.

O sol ainda não dava sinais de substituir a lua, mas a estrada já estava lisa e pronta para ser percorrida.

Chegamos em Mahunhane por volta das 6 da manhã.

Os associados já estavam trabalhando na machamba.

Plantavam, regavam e colhiam.

Ritual que disciplina o tempo todos os dias.

Mas aquele dia, não era qualquer tempo.

Não era para ser qualquer dia.

Deixaram as enxadas descansarem a sombra do cajueiro.

As mulheres estenderam as capulanas e procuraram a melhor posição para o corpo. O corpo dos homens sossegou em troncos de árvores.

Um silêncio nervoso parecia querer explodir, quando o Consino, técnico rural, disse:

- Dia de eleições. Precisamos escolher a nova diretoria da associação. É hoje.

Os camponeses mostraram sorrisos que escondiam a ansiedade de semanas. Dava para escutar aquela zueira e ti ti ti que antecedem os grandes acontecimentos.

Em Mahunhane, os canditados surgem na hora. Quem quiser fazer parte da nova diretoria é só se levantar.

Além do Carlos, atual presidente, mas 8 canditados colocaram o corpo em movimento e se levantaram para o desafio.

Primeiro 5 homens e depois 4 mulheres, com um andar lento, quase que pedindo licença, completaram a fila dos canditados.

Cada um recebeu um número. Um registro de candidatura.

Não tinham cartas programa e nem mesmo partidos políticos.

Em Mahunhane, ninguém tem dúvida do que tem que ser feito.

Mesmo assim, cada candidato teve seu tempo.

Não foram controlados por relógios, por assessores e nem interrompidos por intervalos comerciais.

Era o momento deles falarem o que sentem sobre o trabalho.

Sem ilusões e nem falsas promessas.

No lugar da demagogia e versos já conhecidos, a pedagogia do coração.

Falas lentas, em compasso de espera da próxima palavra.

- Não conheciamos repolho. Agora já plantamos e comemos. Quero conhecer outros alimentos e plantar aqui na associação.Adriano, candidato 6

- Precisamos de encorajamento e de força. Precisamos seguir no caminho do desenvolvimento. Delfina, canditada 9

- A associação tem que chegar a um bom porto. Feliciano, candidato 3

Com o final das falas, as mãos, meio sem jeito, pegaram os lápis e cada um copiou o número de seus canditados escolhidos.

Momento de silêncio.

Momento de escolha.

Momento de concentração.

Momento de reflexão.

Ajudei alguns para que as mãos obedecessem suas vontades.

Outros, preferiram se afastar um pouquinho para fazer sua escolha.

Pensar e olhar de fora por segundos aquele grupo que se mistura a sua própria vida.

Numa caixa de bolacha de água e sal, já sem o uso original, cada um depositou seu voto.

Ao final eram 34 papéis.

Um a um foi aberto e contado em voz alta, para que todos pudessem escutar os números.

- 2, 4 ,7, 8 mais um 8...

Números que em outros tempos, são usados para mostrar as ausências e riquezas de Mahunhane.

Números que contam os recentes repolhos.

Mas, as galinhas que me desculpem, perderam um momento que nem um milhão de números e palavras irá traduzir.

Celebraram a reeleição do presidente.

Uma festa democrática, uma lição de cidadania.

Não pelas eleições, não pelo voto e nem pela urna.

Mas sim, por assumirem seus destinos, por outros muitos já esquecidos, e determinarem sua própria ordem e progresso.

Khanimambo

sexta-feira, agosto 24

Cheiro de casa


Khanimambo - Chegar a um lugar tão especial não pode ser tarefa fácil.

É preciso um ritual de passagem.

Tomar distância da terra firme e do barulho da cidade para seguir em direção a uma linha tranquilamente deitada no horizonte.

Sentir no caminho o vento forte e gelado, não deixar nada no lugar.

A água fria do oceano Índico bater no rosto e fazer os olhos, a revelia, fecharem.

Calar-se com o barulho do motor.

E então, daí sim: pode-se chegar.

Depois de 40 minutos de barco de Maputo encontrei Macaneta.

Ilha deserta de humanos e povoada de natureza.

Talvez esse tenha sido o sentimento de Cristina, moçambicana de meia idade, que chegou com os 3 filhos pela primeira vez em 1986.

Desde lá, nunca mais deixou de ir.

Nas primeiras vezes a idéia era passar pouco tempo, mas as semanas em Macaneta viram meses e anos. E em 1996, com a ajuda de seu filho Cris, decidiu ser generosa com todos nós e construiu algumas tendas para que outros pudessem sentir Macaneta.

Não é um hotel, nem mesmo uma pousada simples. É uma extensão da casa e da vida de Cristina.

- Não faço propaganda. Apenas peço que quem gostou fale para outra pessoa que sabe que irá perceber esse lugar, sem energia elétrica e sem estrutura.
Cristina

Dormímos em tendas, sobre uma plataforma de madeira. No alto, a proteção e luz de um céu carregado de estrelas, quase dispensava as lanternas.

O almoço e jantar, dependia do que o mar nos trazia.

Dia de lula e caranguejo e noite de peixe.

Na praia, de areia fina, apenas alguns poucos barcos de pescadores, mais castigados pelo tempo do que pelo uso.

Andávamos sem pressa para prestigiar o caminho.

Andar de quem não sabe o que esperar.

Parávamos para fotos, para descansar de tanto relaxar e para aproveitar o sol.

Foi assim, sem destino, que chegamos no canto da ilha: onde o rio encontra o oceano.

- Se andar por aqui, acompanha o rio, depois de fazer as curvas nas dunas, chega no mar.
Cristina

É sempre buscando esse e outros encontros que Cristina volta toda semana para Macaneta.

Depois de construir as tendas e o simples espaço de convivência da ilha, seu filho Cris, faleceu.

Fazia parte do Médicos sem Fronteiras e é a sua foto sorrindo que ilumina a pequena cozinha de Macaneta.

- O Cris mora aqui. Ele está em todo lugar.
Cristina

Macaneta é isso. Um lugar para se lembrar.

Lembrei de uma natuza e beleza que já me esquecia.

Lembrei de que é possivel, nesse mundo, estar em paz e serena.

Lembrei de casa com saudade, mesmo me sentindo tão perto.

Lembrei dos que estão aqui e alí.

Mas principalmente, lembrei dos que estão em todo o lugar.


No domingo, no barco, na hora de partir, acenamos para Macaneta.

Cristina, fez um longo aceno. Não de quem se despede de um lugar, mas de quem dá um até logo as lembranças já com saudade e vontade de um pronto reencontro.

O importante não é a casa onde moramos.
Mas onde, em nós, a casa mora.
Mia Couto

Saudades...

Khanimambo

"Vou historiar a minha vida..."


Khanimambo - Já era cedo e tínhamos que correr para alcançar o dia que a tempo já tinha começado.

Percorremos a estrada nacional até a comunidade de Chimondzo. Lá, o Sr. Salomão Nuvunga nos esperava.

Algumas de suas mulheres cuidavam das crianças, outras terminavam de regar a recente plantação de alface.

Cadeiras no lugar certo, filmadora ligada, o sol como luz natural refletia a mistura de emoção e nervosismo do Sr. Salomão.

Depois de falar seu nome, idade e local de nascimento, historiou sua própria narrativa.

Contou pouco de sua infância. Fazia um esforço para percorrer nas lembranças aquela época. Falou da guerra e de como fugiu para o mato. Com um sorriso, se lembrou do primeiro dia em sua própria machamba.

O Sr. Engenheiro de Chivalene, não esqueceu nenhum detalhe de quando esteve nas minas da África do Sul. Já o Sr.Massukos, depois de 16 anos servindo o exército nacional, terminou por acabar, em Macia, em meio a enxadas e hortícolas.

A Maria, mesmo em Changana, falou na língua universal quando descreveu em detalhes o trabalho da moegeira de milho, que hoje, cuida todas as tardes.

O Domingos, pulverisador da região de Rigoanne, carregou a voz de orgulho para dizer tudo o que já aprendeu com as atividades da associação:

- A vida melhorou. O que aprendemos isolados não vale, tem que aprender junto.


Uma pausa para o almoço e um primeiro olhar para as histórias.

- Eles têm muito para falar. São trajetórias de muita vida.
Custódio, técnico rural.

Custódio, jovem de 24 anos, disse que foi por causa do seu tio, pequeno agricultor, que ingressou na escola técnica agrícola:

- Eu via ele colocar as sementes na terra e depois de dois meses chegava com tomates vermelhos e bonitos. Queria entender essa mágica. Era bonito de ver.


Seu sonho é aprender inglês e as poucas palavras que já aprendeu, ensina a grupos de crianças por onde passa:

- Ensinar é a melhor forma de aprender.


Isso também foi o que disse o Sr. Mupice, presidente da Associação de Magul, que espera ensinar tudo o que sabe aos seus filhos e que assim eles possam saber ainda mais.

Foram dois dias de muita vida, contadas através de histórias.

Casos engraçados, rupturas, caminhos, dores, alegrias de encontros, perdas, surpresas, família, amor ...

Algumas histórias sem começo claro, sem data de nascimento.

Outros sentimentos sem fim definido, como emoções que sumiram no tempo.

Histórias que começam pelo meio e se misturam e dão sentido a dita história do próprio país.

Cada uma, única pela experiência de seu narrador, mas todas juntas, um mosaíco em sintonia com o retrato de um povo.

Coube a mim a escuta.

Abri espaço, tempo e presença na minha própria história, para que a partir de agora, misturada a tantas outras, eu siga ... diferente e sempre em frente.

Khanimambo

sexta-feira, agosto 10

Afinal, quem somos?


Khanimambo - Sábado, tínhamos acabo de almoçar e estávamos esperando o tempo passar para sair novamente quando tocou a campainha.

Era o Félix, jovem tímido, com ar de cansado e olhar orgulhoso por cumprir uma tarefa tão importante.

Ele faz parte de um grupo, de mais de 12.000 estudantes e professores, responsáveis pelo Censo 2007.

A visita é rápida.

Pergunta-se o nome, tamanho da casa, número de quartos, se é feito ou não cultivo de hortícolas, se tem ou não criação de animais, número de mulheres por família e escolhendo entre as alternativas define-se quem você é!

Simples.

Para essa campanha cívica o governo comprou algumas motos, carros e mais de 2.000 bicicletas.

Antes mesmo das entrevistas começarem, podia-se ver na televisão comerciais convocando o povo Moçambicano a participar.

Em Maputo, carros percorreram as ruas com o alto-falante mobilizador:

- Povo Moçambicano, participe do Censo 2007! É importante sabermos quem somos...


A maioria dos entrevistadores são professores. Portanto, as aulas foram suspensas nesses dias em todo o país.

Na semana passada, os camponeses não foram para as machambas. Queriam estar em suas casas para esperar o "Félix".

- Quem não tá aqui é porque tá em casa para esperar as perguntas. Quem está aqui, deixou a cabeça lá! Associado de Magul


O último Censo foi feito logo depois da guerra e muitos acham que a população é muito maior do que se diz por aí!

- Ninguém entra no mato, para contar as pessoas que moram lá. Nunca foram. Por que agora vão para fazer perguntas? Sr. Antonio, morador de Macia


O clima do país mistura novidade, ansiedade, desconfiança e orgulho.

- 2.000 bicicletas é muito pouco. Os professores não vão aguentar fazer longas distâncias.


- Tem gente que vai inventar gente. É mais fácil preencher tudo aquilo debaixo da árvore.

- Hoje não vou sair de casa. Quero ser contada!

Essa mistura parece refletir a sede de um povo de se conhecer. Saber e valorizar suas raízes, sua história e daí, poder seguir em frente.

Por certo, não serão somente as perguntas do Censo que farão esta tarefa.

A história desse povo não é de múltlipas escolhas. Dentre os poucos caminhos possíveis, muitas vezes não foram eles que escolheram.

A complexidade das multi-culturas, da história da colonização, da recente guerra, da independência de papel, dos acordos de paz, das muitas línguas e tribos, requer uma capacidade de ler o que nunca foi e nem será escrito.

Ou pelo menos com essas letras e números que conhecemos.

Um desavisado, numa das páginas de Mia Couto, nos dá uma dica de onde encontrar a história do povo Moçambicano:


- Esse homem vai carregado de sofrimento.
- Como sabe?
- Não vê que só o pé esquerdo pisa com vontade? Aquilo é o peso do coração. A terra têm suas páginas: os caminhos. Você lê o livro e eu leio o chão.


Khanimambo

sexta-feira, agosto 3

Os números apontam que é tempo


Khanimambo - Ele chegou um pouco atrasado no encontro da Associação de Muzui. Estava com a fala cansada, seu corpo já andava quase sozinho treinado a longa distância diária.

Chegou para anunciar a saída.

- Preciso ir a Macia. Hoje é começo de mês e preciso entregar as estatísticas para o DDS ( Departamento Distrital de Saúde).

Carlos é o homem dos números da comunidade. Na associação é responsável pelo controle das sementes, da produção e sabe o quanto custa para um alface florescer.

- Anoto tudo no meu caderno. É bom anotar os números, as vezes é confuso. O escrito ajuda a lembrar. Tá apontado, então é isso... Tenho apontamento de tempo que nem lembro. Mas quando vejo o número, lembro do tempo.

Mas desta vez, era de outros números que estava a falar.

Carlos é ativista de saúde da região. Corre com seu corpo para uma casinha de palha todos os dias. Corre porque sua tarefa tem pressa de tempo.

Ele atende todos os camponeses da região.

Nesse mês de julho, os números apontados, dizem que ele fez mais de 230 atendimentos.

- Tem de tudo... é muita málaria. E tem também SIDA, mas só se sabe que é SIDA depois de morto. Até lá, ninguém quer fazer a testagem. Esse mês morreu pouca gente...

Carlos indica os remédios e distribui esperanças todos os dias. É calmo e carinhoso quando fala:

- Não tenho vencimentos por esse trabalho. Nenhum ativista tem. O meu vencimento é que com isso posso tratar de meus filhos.

Carlos tem 2 esposas e 6 filhos e além de seu trabalho na machamba e como ativista de saúde, vive no meio do tempo e dos números.

Corre contra o tempo para aumentar o número da produção.

Torce para que o tempo pare, quando olha cada gota da chuva.

Fica feliz com um número pequeno de pragas em tempos de boa colheita.

Conta as doenças na esperança de tempos melhores.

Não perde tempo e aumenta o número de atendimentos.

E sem pressa e sem perder tempo, não consegue contar a alegria que sente quando escuta:

- Dr. Carlos, Dr Carlos! É assim que me chamam. Eu gosto... é o meu trabalho. Sou eu, não é? - Khanimambo.

sexta-feira, julho 27

Conversas entre silêncios


Khanimambo - Quase 10 horas da manhã e duas camponesas voltavam para suas casas num ritmo lento. Alguns caminhavam mais a frente, mas elas caminhavam a seu tempo. São mulheres do Makulle, que faleceu no começo do mês de julho.

Macia é um distrito da província de Gaza, situado a cerca de 2 horas de Maputo. Moram cerca de 133 mil camponeses espalhados em pequenas tribos e vilarejos. A incidência de pobreza em Gaza é uma das mais acentuadas em Moçambique (83%), sendo que quase todo o restante da população vive em miséria absoluta.

Conviver com a morte é algo que se aprende desde cedo por aqui.

São crianças, jovens e adultos que um dia silenciam diante de uma das muitas batalhas.

O silêncio ora vem da disputa com os carros e caminhões na estrada nacional.

Ora do ultimato da malária, num corpo já marcado pela ausência de comida e água.

Ora da aids (SIDA) que marca a vida de cerca de 33% da população da região.

Ora vem junto com as doenças trazidas, pelos homens, das minas da África do Sul.

Ou então, silenciam no caminho até o único posto de saúde de Macia. As vezes, mais de 10 quilometros percorridos a pé de onde moram.

Quando um querido próximo morre, a familia faz luto.

-"...morto amado nunca pára de morrer..." Mia Couto, escritor Moçambicano

Ninguém trabalha por cerca de 2 semanas.

Trocam a comida que vem das enxadas pela solidariedade trazida pelos amigos.

As mulheres só andam juntas e por cerca de 1 ano, vestem preto. Sempre roupas longas, para que o corpo inteiro fique coberto.

Por 6 meses, não falam.

É um tempo de intensa conversa com os ancestrais.

Nos próximos 6 meses, falam, mas sempre ajoelhadas.

Quando cruzei com uma delas, numa estrada a caminho para a Associação de Mitocolone, ela parou e se ajoelhou para dizer bem baixinho:

- Lichile, molungo! (Bom dia, branca!)

Analisar as questões ligadas à saude é como caminhar em círculos e voltar sempre para o mesmo ponto.

O distrito de Macia está localizado numa das províncias com grandes períodos de seca. Nos últimos 3 anos, o déficit alimentar para a população da região foi de 3 a 4 meses por ano.

- "Um povo não pode lutar a sério se não tiver a barriga farta e boa saúde. Temos que nos construir a nós mesmos..." Almícar Cabral - pensador de Cabo Verde

- "Saímos do pó e voltaremos para o pó. Isso não é novidade. Gosto de coisas novas, então vamos cuidar é de comer até lá!" Consino - técnico rural da região

Desde 1976, a OIT (Organização Internacional do Trabalho) reconhece como nessecidade básica para o trabalhador a alimentação, alojamento e água potável entre outras coisas.

A partir do fim da guerra civil, países chamados donatários, são responsáveis por cerca de 70% do orçamento federal de Moçambique, com linhas claras de investimento na área de segurança alimentar.

Organizações não governamentais, desenvolvem projetos e programas nas regiões mais alarmantes, com financiamento principalmente da União Européia e de outras fundações e doadores do hemisfério norte.

Mas, se perguntarmos para um camponês saído da machamba depois de um dia longo de trabalho talvez a grande diferença sentida por ele é que hoje ele não passa mais fome e sim sofre pela falta de comida.

Até quando os silêncios não serão escutados? - Khanimambo

E agora, José?


Khanimambo - A associação de Magul e de Manzire hoje, além de estarem próximas uma da outra, formam a primeira União entre associações agro-pecuárias da região.

As duas juntas envolvem mais de 50 associados, ou seja, suas atividades impactam a vida de cerca de 650 pessoas.


A história não foi bem assim desde o início. Por estarem muito próximas, os camponeses das duas regiões disputaram por décadas as melhores terras, os poucos espaços de comercialização e por fim sempre chegavam a conclusão de que um não poderia viver ao lado do outro.


O que os colocou próximos foi um vacilo dos ancestrais.


Depois de dois anos intensos de conversas, resolução de conflitos entre os vivos e mortos, um canal de diálogo foi aberto. O resultado disso é visível. Além de aprimorarem as técnicas produtivas, a União tem a sua própria Casa Agrária.


Nesse espaço vão colocar uma descascadeira de arroz e assim assumir uma nova etapa de produção e melhoria de suas próprias vidas.
Nessa semana, uma notícia parou as atividades da União.

Parou a finalização da obra da Casa Agrária.


Parou uma história de desenvolvimento.


E aqueceu as conversas por toda Macia.


A notícia não veio de longe e nem de gente desconhecida.


Numa casa perto da estrada nacional mora a Neli. É uma senhora de cerca de 80 anos que conhece todos e todos a conhecem.


Ela mora com as noras e netos. O marido já faleceu, na verdade nínguem nunca o viu. Seus netos saem pouco de casa. As noras, não se sabe ao certo quantas são.

Neli é a líder tradicional da região de Manzire e Magul. Não foi eleita, não se candidatou e nem mesmo pode renunciar ao seu cargo.

Os líderes tradicionais acumulam uma série de papéis.


Quando uma criança nasce, precisa visitar o líder para que ele determine que ervas e chás ela deve tomar para crescer forte.


Quando alguém está doente, rapidamente o líder deve ser consultado e dai a medicina tradicional deve ser respeitada.


São eles que determinam o uso das terras. A terra em Moçambique é pública, mas o uso dessa ou daquela parcela por esse ou aquele camponês, na prática, é determinado pelo líder tradicional em consulta aos ancestrais.


Quando alguém morre é o líder que faz a cerimônia final.


E ainda se você quer ter algum sucesso em um pequeno negócio é importante que o líder faça uma reza antes de começar suas atividades.

Muitos dizem que são curandeiros, outros que são feiticeiros. Mas não há dúvida sobre a sua ligação com os ancestrais e por isso temem suas palavras como quem escuta o veredito final.

O governo reconhece as lideranças tradicionais e portanto se junta aos camponeses nessa mistura de medo com respeito.


A Neli foi visitar a Casa Agrária da União esses dias e avaliou que o terreno que está sendo usado para a construção não é bem o que ela tinha imaginado.


Tinha sido consultada anteriormente mas, agora acredita que a Casa Agrária deve ser construída numa parcela menor, para que tenha mais sucesso.


Esse anúncio paralisou os camponeses, que não se sentem à vontade para negociar com os ancestrais.

- Isso poderia ter implicações para os nossos filhos! Não sabemos o que pode acontecer. Moazir - presidente da União

Esse anúncio nem de perto tocou a chefe do governo

- A Neli sabe das coisas por aqui. Você sabe... ela escuta eles. (ancestrais) Até podemos c
onversar e dialogar mas precisamos respeitar o tempo dos ancestrais... - Chefe de posto da localidade

As compras de materiais pararam. As fruteiras já encomendadas começam a ser perdidas. As pessoas da obra foram dispensadas e por volta de U$ 50.000,00 estão a espera de uma definição.


Esse caso não é isolado.


A crença nos ancestrais por vezes paralisa o camponês, mas no mesmo dia é o que faz acordar para seguir sua vida.


O que pode parecer ser uma sombra é luz ao mesmo tempo.


O que provoca medo é o que dá força e coragem ao mesmo tempo.


O que é real pode parecer de outro mundo no mesmo dia.

E agora, Neli? - Khanimambo

sexta-feira, julho 20

Descobrindo o novo do mundo


Khanimambo - Estávamos no acostamento da estrada nacional, no estacionamento do único posto de gasolina de Macia. O raro barulho que ainda podia se escutar era dos poucos carros que apressadamente partiam para Maputo. As pessoas andavam quase correndo para chegar em suas casas. Já era hora de se recolher. O vento anunciava uma noite daquelas!

Sentados numa mesa de plástico branco com quatro cadeiras, tomávamos a segunda rodada de chá com chamussa e pão de alho quando a conversa começou.

O administrador da província é um moçambicano de meia idade. Pessoa ilustre por essas bandas, representa a autoridade máxima do Governo. Tem fala mansa e joga as frases com cautela na roda, num ritmo sem pressa.

João de Deus é português e meu parceiro de trabalho. Tem sempre muitos causos que foram contados e vividos pelos quatro cantos do mundo.

O Indiano, como é conhecido, mora em Moçambique há 18 anos. O sotaque ainda é forte e a ligação com sua terra está nos cantos de seu pequeno comércio e na emoção quando se lembra da cidade natal.

- Querem construir uma ponte de 40 quilometros para ligar Moçambique a mais 2 países da África. Será que tem outra ponte tão grande assim no mundo?

- Na estação de trem de Nova Delhi, partem trens a cada 30 segundos. Será que tem outra estação tão movimentada assim?

- Moram em Luanda mais que 50% de toda a população de Angola. Será que tem outro país com pouca gente espalhada por tantas terras?

- A população de Moçambique é menor do que a da cidade de São Paulo. Como cabe todo mundo na mesma cidade, se aqui precisamos do país inteiro?

- Como plantam trigo no Canadá se só conseguem se dedicar 4 meses a agricultura?


- Em Luanda, o maior comércio popular se chama Roque Santeiro, por conta da novela do Brasil. Por onde passam as novelas do Brasil? Quem assiste?

- Em Portugal, quando faz frio e esquecemos a roupa fora de casa, ela congela. Aqui não faz tanto frio assim. Semana passada nevou no Rio Grande do Sul e o Indiano perguntou de que cor era a neve.


Percorremos países e cidades numa viagem sem compromisso. Partimos sem destino do longínquo posto de gasolina de Macia.

Cada um falava o que sabia ou achava que sabia...

O importante alí não era definir o mundo, saber ao certo seus contornos e limites. Não buscávamos as verdades sobre os povos, a precisão histórica e nem mesmo os números certos das estatísticas.

A cada nova frase uma pausa.

Um silêncio de quem admira o novo do mundo. Um tempo de reconhecer a vastidão e ao mesmo tempo a fragilidade de todos nós.

Mais uma pergunta sem resposta, mas uma resposta sem pergunta...

E um novo silêncio.

A cada pausa, cada um fazia a sua própria viagem. Estávamos juntos, sem dúvida, mas aquela experiência foi única e diferente para cada um.

Até que, depois de algumas horas, o Indiano rompeu o silêncio e como porta voz, de forma doce e calma, contemplou a cena e disse:

- Como o mundo é grande! Cabe até nós sentados aqui, conversando em Macia.

No céu a Lua, também nova, parecia abençoar os viajantes. Já os mosquitos reclamavam por seu espaço nesse mundão.

E nós, reconhecemos a hora de voltar pra casa, com um sentimento quase planetário e aquecidos pelo chá de Macia. - Khanimambo.

Lobolo, o casamento tradicional.


Khanimambo - Andando por Maputo, ou até mesmo por Macia, é quase impossível não entrar no meio de um roda de pessoas, celebrando a união de mais um novo casal.

Os noivos dançam, cantam e com seus familiares e amigos festejam a nova vida. Mas, quando olhamos com um pouco mais de atenção, percebemos que essas festas são o final de um longo caminho que teve que ser percorrido.


O rapaz interessado na moça, manda seus amigos à casa da pretendida. Ele não vai pessoalmente, essa tarefa é para o irmão ou primos. Os portadores do recado declaram aos pais da pretendida as vontades do noivo e como sinal de boas intenções deixam lembranças para a família.


Para a moça, normalmente um vestido ou até mesmo um brinco. Para o pai, uma bebida é de bom agrado e para mãe uma capulana ou artesanato.

Os emissários, como são conhecidos, saem de lá com a promessa de receberem em breve uma visita por parte da noiva. Essa visita é que determina o futuro da união.


Depois de cerca de um mês, os emissários, agora por parte da noiva, chegam na casa do noivo e deixam uma lista de pedidos. São pedidos que devem ser cumpridos para que eles possam se casar.


Normalmente a lista é longa, e inclui uma farda completa para o pai, roupas e vestidos para a mãe e avós e caso alguém tenha colaborado na educação da filha, tem direito de fazer parte desta lista e ser reconhecida neste momento.


A lista, principalmente na zona rural inclui também cabeças de gado e alguns mil meticais. Em Maputo e perto de zonas mais urbanas, essa tradição já permanece de forma mais simbólica. Mas, em zonas como Macia, tudo ainda é seguido conforme os ancestrais esperam.


Quando o noivo estiver pronto, ou seja, tudo da lista já comprado e organizado é a hora de uma nova visita à casa da noiva. Não vai pessoalmente de novo, manda emissários ao encontro chamado Lobolo.


Lobolar a filha é entregá-la para sua nova vida. Com todos os pedidos atendidos, não tem mais nada que impeça isso. O noivo de seu jeito, provou suas intenções. A família ficou satisfeita com sua devoção e pequenos agrados. A filha seguiu seu caminho.
Não tem papéis assinados, não tem igreja, apenas a benção dos ancestrais.

A poligamia é a base das relações familiares em Moçambique, ou seja, dependendo das posses o homem repete esse ritual em média 3 ou 4 vezes ao longo da vida.


Quando perguntei para Carla e Júlio, um casal jovem de Macia, ficou claro o quanto o Lobolo é visto de forma diferente para cada geração e para cada gênero.

Ao que parece, assim como esta tradição, tantas outras estão se confrontando diariamente com a modernidade, novos valores e com o questionamento do próprio povo Moçambicano.

As novas raparigas, "ampliaram o seu mundo" por meio dos livros e não querem mais repetir todos os caminhos percorridos pelos pais.

Mas, numa coisa todos concordam e não poupam palavras: a importância da benção dos ancestrais.


- "Estamos vivendo numa terra que tem história e devemos explicações a eles."

Compor a tradição com o mundo novo será um desafio e muitas vezes uma mistura necessária. Serão precisos novos instrumentos, aprender outro ritmo e espero que no resultado dessa mistura, a beleza da música genuinamente africana continue a ser ouvida. - Khanimambo.

A Joana é da família!




Khanimambo - Parei numa venda da Vila de Macia a procura de leite magro. Já faz uns dias que estou nessa batalha e quando entrei na venda do Gigi, percebi que os meus problemas estavam resolvidos.

Uma estante enorme com alimentos, cimento, caixas, materiais agrícolas... enfim, era só ter paciência que em algum lugar por ali estava escondido o meu leite.

Conversa vai e vem e acabei tomando um café na casa do Gigi, nos fundos da venda. Moçambicano, segundo ele estilo coronel. Sua casa tem pé direito alto e móveis espalhados por todos os lugares. Antigamente alí era um depósito de automóveis. Ele com o seu tino empresarial reformou parte do local, construiu sua casa, arrumou sua venda, já construiu uma filial perto do Zimbabwe e ainda reforma carros.

Gigi, tem uma vida de andarilho. Vai sempre de uma comunidade para outra. Um dia quando voltava para casa percebeu que tinha uma visitante ilustre.

O nome dela é Joana, tem mais de 2 metros. No começo ficava sempre escondida entre um carro e outro. Mas com o tempo, Gigi descobriu que Joana é cega e fugitiva de um lago perto de Bilene.

Depois do café fui calmamente levada para conhecer Joana. Estava certa que se tratava da esposa de Gigi ou da filha mais velha.

O susto foi grande, a máquina caiu no chão, comecei a gaguejar até que a Joana começou a se mexer parecendo reconhecer a voz do Gigi.

- Ela é cega mas reconhece minha voz. Faz mais de 20 anos que chamo seu nome. Se eu ficar bem perto, não faz nada! É parte da família!

Sem saber um pouco como lidar com a situação, tirei algumas fotos do imenso crocodilo e disse ao Gigi que voltaria outro dia para conversar um pouco mais com a família, inclusive com Joana. Saí as pressas e nem do leite me lembrei. Vou voltar...
Khanimambo.

sexta-feira, julho 13

Reencontro




Khanimambo - Depois de uma longa estrada, de alguns buracos, de alguns caminhos duvidosos, paramos o carro e podia-se ver ao longe algumas mulheres curvadas trabalhando numa plantação.

Hoje, plantam batata, arroz e tantas outras hortaliças.
Hoje, percorrem quilomêtros para buscar água.
Hoje, equilibram potes de mais de 50kg na cabeça.
Hoje, cozinham para em média 15 pessoas todos os dias.
Hoje, preparam a terra em suas machambas.
Hoje, cuidam daqueles que não podem mais trabalhar.
Hoje, olham pelas crianças.
Hoje, carregam as crianças em suas costas.
Hoje, cuidam dos maridos.
Hoje, buscam sementes na estrada principal.
Hoje, levam o que colheram para vender na estrada principal.
Hoje, cantam.
Hoje, não descansam.

Quando pergunto por seus filhos: dizem que estão na escola para aprender mais.
Quando pergunto por seus maridos: dizem que estão na África do Sul, nas minas de ouro ou em casa fazendo outras coisas.
Quando pergunto por elas e seus sonhos: dizem que estão bem e para o amanhã, só não querem mais passar fome.
São mulheres fortes, com traços de quem luta todo dia pela vida sem esquecer da doçura de um sorriso.
Ainda que não digam com todas as letras, sabem de sua força se permanecerem juntas. Querem ver a terra que cuidam todos os dias cheia de alfaces, rúculas, batatas e depois ver a panela de suas casas também cheias.
São mães, são avós, são mulheres, são filhas: verdadeiras guerreiras, escondidas a céu aberto no meio de uma savana moçambicana.

Usam capulanas, tecidos coloridos, na cabeça e como saias.

- Mas por que usam esses lenços? É para proteger do sol?

- É .... também é .... é ... é para ficar bonita!

São lindas as mulheres da Associação de Chicotane.

Fiquei conhecida como Mama Lúcia por lá e na minha próxima visita já disseram para que eu não esqueça a minha capulana.

Devo voltar lá algumas vezes.

Elas estão prontas e sonhando com o próximo passo: criação de frango para abate.

"Os encontros são feitos das mais diversas químicas, às vezes construídos simplesmente a partir de um olhar, ou da soma de pequenas situações cotidianas, que mudam a direção de nossas vidas. Poucos podem ser avaliados ou medidos cientificamente. Só o contato com a reconstrução da nossa experiência de vida, e um diálogo interno, podem validar a sua importância" Morgana Mazetti

Foi muito bom reencontrá-las com a mesma devoção pela vida! - Khanimambo.

Quase não saí e quase não cheguei



Khanimambo - Como não poderia deixar de ser, a chegada foi tão ou mais agitada do que a partida. Depois de horas numa fila interminável para embarcar no Brasil e quase perder o vôo, reclinei o máximo da poltrona, que não era muito, coloquei uma trilha sonora afro-brasileira e tentei encontrar o sono perdido das últimas semanas.

Não sabia que no exato momento em que pousei no aeroporto de Maputo, iniciava o que hoje chamo de ritual de passagem.

Estar inteira num lugar não é tarefa fácil. Conseguir viver o aqui e o agora é tarefa para uma vida inteira.


Saí do avião e fui direto para a imigração. Dessa vez, não foram as filas que me atrapalharam, e sim a sensação de que uma parte de mim ainda estava no Brasil.

A esteira rodava, rodava, as pessoas pegavam suas malas e nada...

Deixei o tempo passar um pouco. Sempre depositamos algumas esperanças que o tempo nos traga a solução. Mas, nesse caso, o tempo foi o porta voz da conclusão: minha mala estava se aventurando por outras paragens!


Recorri aos Achados e Perdidos, local mais requisitado do aeroporto. Falei com uma rapariga, que estava dividida entre atender uma fila de pessoas reclamando pelas suas malas e digitar os formulários necessários. Identifiquei a cor e modelo da minha mala num enorme catálogo e recebi a notícia que ainda no mesmo dia ela estaria em Maputo.


Depois de alguns telefonemas, voltei as 21 horas para encontrar o aeroporto vazio, quase sem luz. Começou naquele momento a novela das chaves, que terminaria somente no dia seguinte pela manhã.


Para abrir o depósito das malas era necessário que duas chaves estivessem juntas: a do Sr. Alfândega e a da Júlia, do Achados e Perdidos. Apesar de falarmos a mesma língua, essa tarefa foi uma das mais difíceis que já vivi.


Ninguém podia abandonar seu posto e cada departamento tem seus horários e cultura de funcionamento. Comecei as atividades de moderação antes mesmo de chegar em Macia.


A Júlia reclamava da arrogância dos gajos da Alfândega, e parecia ter medo de pedir um favor a eles. Por outro lado, o Sr. Alfândega, dizia que ela que teria que resolver o problema.


Sem minhas tarjetas e painel, voltei pra casa e só consegui tirar minha mala do aeroporto no dia seguinte depois de mobilizar o Sr. Dimas, de outro departamento desconhecido, a Lili, que adora o Brasil e que naquele dia estava disposta a ousar e romper com as regras, e lógico, depois de uma boa noite de sono, o bem humorado e simpático Sr. Alfândega.


Finalmente no domingo estava inteira, com minhas roupas, livros e lembranças do Brasil.


Acho que nada é por acaso, nem mesmo esse tempo extra no aeroporto. Precisava dele para verdadeiramente chegar por completo.


Essa sensação de chegar por partes, de sentir falta de algumas coisas, de estar aqui, mas estar um pouco lá, de medo do novo, de saudade do conhecido provoca uma mistura de sentimentos.


Tempo bom, tempo sábio!

Feliz por estar aqui e cheia de energia para novos caminhos.

Ufa, cheguei! - Khanimambo.