sexta-feira, julho 27

Conversas entre silêncios


Khanimambo - Quase 10 horas da manhã e duas camponesas voltavam para suas casas num ritmo lento. Alguns caminhavam mais a frente, mas elas caminhavam a seu tempo. São mulheres do Makulle, que faleceu no começo do mês de julho.

Macia é um distrito da província de Gaza, situado a cerca de 2 horas de Maputo. Moram cerca de 133 mil camponeses espalhados em pequenas tribos e vilarejos. A incidência de pobreza em Gaza é uma das mais acentuadas em Moçambique (83%), sendo que quase todo o restante da população vive em miséria absoluta.

Conviver com a morte é algo que se aprende desde cedo por aqui.

São crianças, jovens e adultos que um dia silenciam diante de uma das muitas batalhas.

O silêncio ora vem da disputa com os carros e caminhões na estrada nacional.

Ora do ultimato da malária, num corpo já marcado pela ausência de comida e água.

Ora da aids (SIDA) que marca a vida de cerca de 33% da população da região.

Ora vem junto com as doenças trazidas, pelos homens, das minas da África do Sul.

Ou então, silenciam no caminho até o único posto de saúde de Macia. As vezes, mais de 10 quilometros percorridos a pé de onde moram.

Quando um querido próximo morre, a familia faz luto.

-"...morto amado nunca pára de morrer..." Mia Couto, escritor Moçambicano

Ninguém trabalha por cerca de 2 semanas.

Trocam a comida que vem das enxadas pela solidariedade trazida pelos amigos.

As mulheres só andam juntas e por cerca de 1 ano, vestem preto. Sempre roupas longas, para que o corpo inteiro fique coberto.

Por 6 meses, não falam.

É um tempo de intensa conversa com os ancestrais.

Nos próximos 6 meses, falam, mas sempre ajoelhadas.

Quando cruzei com uma delas, numa estrada a caminho para a Associação de Mitocolone, ela parou e se ajoelhou para dizer bem baixinho:

- Lichile, molungo! (Bom dia, branca!)

Analisar as questões ligadas à saude é como caminhar em círculos e voltar sempre para o mesmo ponto.

O distrito de Macia está localizado numa das províncias com grandes períodos de seca. Nos últimos 3 anos, o déficit alimentar para a população da região foi de 3 a 4 meses por ano.

- "Um povo não pode lutar a sério se não tiver a barriga farta e boa saúde. Temos que nos construir a nós mesmos..." Almícar Cabral - pensador de Cabo Verde

- "Saímos do pó e voltaremos para o pó. Isso não é novidade. Gosto de coisas novas, então vamos cuidar é de comer até lá!" Consino - técnico rural da região

Desde 1976, a OIT (Organização Internacional do Trabalho) reconhece como nessecidade básica para o trabalhador a alimentação, alojamento e água potável entre outras coisas.

A partir do fim da guerra civil, países chamados donatários, são responsáveis por cerca de 70% do orçamento federal de Moçambique, com linhas claras de investimento na área de segurança alimentar.

Organizações não governamentais, desenvolvem projetos e programas nas regiões mais alarmantes, com financiamento principalmente da União Européia e de outras fundações e doadores do hemisfério norte.

Mas, se perguntarmos para um camponês saído da machamba depois de um dia longo de trabalho talvez a grande diferença sentida por ele é que hoje ele não passa mais fome e sim sofre pela falta de comida.

Até quando os silêncios não serão escutados? - Khanimambo

E agora, José?


Khanimambo - A associação de Magul e de Manzire hoje, além de estarem próximas uma da outra, formam a primeira União entre associações agro-pecuárias da região.

As duas juntas envolvem mais de 50 associados, ou seja, suas atividades impactam a vida de cerca de 650 pessoas.


A história não foi bem assim desde o início. Por estarem muito próximas, os camponeses das duas regiões disputaram por décadas as melhores terras, os poucos espaços de comercialização e por fim sempre chegavam a conclusão de que um não poderia viver ao lado do outro.


O que os colocou próximos foi um vacilo dos ancestrais.


Depois de dois anos intensos de conversas, resolução de conflitos entre os vivos e mortos, um canal de diálogo foi aberto. O resultado disso é visível. Além de aprimorarem as técnicas produtivas, a União tem a sua própria Casa Agrária.


Nesse espaço vão colocar uma descascadeira de arroz e assim assumir uma nova etapa de produção e melhoria de suas próprias vidas.
Nessa semana, uma notícia parou as atividades da União.

Parou a finalização da obra da Casa Agrária.


Parou uma história de desenvolvimento.


E aqueceu as conversas por toda Macia.


A notícia não veio de longe e nem de gente desconhecida.


Numa casa perto da estrada nacional mora a Neli. É uma senhora de cerca de 80 anos que conhece todos e todos a conhecem.


Ela mora com as noras e netos. O marido já faleceu, na verdade nínguem nunca o viu. Seus netos saem pouco de casa. As noras, não se sabe ao certo quantas são.

Neli é a líder tradicional da região de Manzire e Magul. Não foi eleita, não se candidatou e nem mesmo pode renunciar ao seu cargo.

Os líderes tradicionais acumulam uma série de papéis.


Quando uma criança nasce, precisa visitar o líder para que ele determine que ervas e chás ela deve tomar para crescer forte.


Quando alguém está doente, rapidamente o líder deve ser consultado e dai a medicina tradicional deve ser respeitada.


São eles que determinam o uso das terras. A terra em Moçambique é pública, mas o uso dessa ou daquela parcela por esse ou aquele camponês, na prática, é determinado pelo líder tradicional em consulta aos ancestrais.


Quando alguém morre é o líder que faz a cerimônia final.


E ainda se você quer ter algum sucesso em um pequeno negócio é importante que o líder faça uma reza antes de começar suas atividades.

Muitos dizem que são curandeiros, outros que são feiticeiros. Mas não há dúvida sobre a sua ligação com os ancestrais e por isso temem suas palavras como quem escuta o veredito final.

O governo reconhece as lideranças tradicionais e portanto se junta aos camponeses nessa mistura de medo com respeito.


A Neli foi visitar a Casa Agrária da União esses dias e avaliou que o terreno que está sendo usado para a construção não é bem o que ela tinha imaginado.


Tinha sido consultada anteriormente mas, agora acredita que a Casa Agrária deve ser construída numa parcela menor, para que tenha mais sucesso.


Esse anúncio paralisou os camponeses, que não se sentem à vontade para negociar com os ancestrais.

- Isso poderia ter implicações para os nossos filhos! Não sabemos o que pode acontecer. Moazir - presidente da União

Esse anúncio nem de perto tocou a chefe do governo

- A Neli sabe das coisas por aqui. Você sabe... ela escuta eles. (ancestrais) Até podemos c
onversar e dialogar mas precisamos respeitar o tempo dos ancestrais... - Chefe de posto da localidade

As compras de materiais pararam. As fruteiras já encomendadas começam a ser perdidas. As pessoas da obra foram dispensadas e por volta de U$ 50.000,00 estão a espera de uma definição.


Esse caso não é isolado.


A crença nos ancestrais por vezes paralisa o camponês, mas no mesmo dia é o que faz acordar para seguir sua vida.


O que pode parecer ser uma sombra é luz ao mesmo tempo.


O que provoca medo é o que dá força e coragem ao mesmo tempo.


O que é real pode parecer de outro mundo no mesmo dia.

E agora, Neli? - Khanimambo