sexta-feira, julho 20

Descobrindo o novo do mundo


Khanimambo - Estávamos no acostamento da estrada nacional, no estacionamento do único posto de gasolina de Macia. O raro barulho que ainda podia se escutar era dos poucos carros que apressadamente partiam para Maputo. As pessoas andavam quase correndo para chegar em suas casas. Já era hora de se recolher. O vento anunciava uma noite daquelas!

Sentados numa mesa de plástico branco com quatro cadeiras, tomávamos a segunda rodada de chá com chamussa e pão de alho quando a conversa começou.

O administrador da província é um moçambicano de meia idade. Pessoa ilustre por essas bandas, representa a autoridade máxima do Governo. Tem fala mansa e joga as frases com cautela na roda, num ritmo sem pressa.

João de Deus é português e meu parceiro de trabalho. Tem sempre muitos causos que foram contados e vividos pelos quatro cantos do mundo.

O Indiano, como é conhecido, mora em Moçambique há 18 anos. O sotaque ainda é forte e a ligação com sua terra está nos cantos de seu pequeno comércio e na emoção quando se lembra da cidade natal.

- Querem construir uma ponte de 40 quilometros para ligar Moçambique a mais 2 países da África. Será que tem outra ponte tão grande assim no mundo?

- Na estação de trem de Nova Delhi, partem trens a cada 30 segundos. Será que tem outra estação tão movimentada assim?

- Moram em Luanda mais que 50% de toda a população de Angola. Será que tem outro país com pouca gente espalhada por tantas terras?

- A população de Moçambique é menor do que a da cidade de São Paulo. Como cabe todo mundo na mesma cidade, se aqui precisamos do país inteiro?

- Como plantam trigo no Canadá se só conseguem se dedicar 4 meses a agricultura?


- Em Luanda, o maior comércio popular se chama Roque Santeiro, por conta da novela do Brasil. Por onde passam as novelas do Brasil? Quem assiste?

- Em Portugal, quando faz frio e esquecemos a roupa fora de casa, ela congela. Aqui não faz tanto frio assim. Semana passada nevou no Rio Grande do Sul e o Indiano perguntou de que cor era a neve.


Percorremos países e cidades numa viagem sem compromisso. Partimos sem destino do longínquo posto de gasolina de Macia.

Cada um falava o que sabia ou achava que sabia...

O importante alí não era definir o mundo, saber ao certo seus contornos e limites. Não buscávamos as verdades sobre os povos, a precisão histórica e nem mesmo os números certos das estatísticas.

A cada nova frase uma pausa.

Um silêncio de quem admira o novo do mundo. Um tempo de reconhecer a vastidão e ao mesmo tempo a fragilidade de todos nós.

Mais uma pergunta sem resposta, mas uma resposta sem pergunta...

E um novo silêncio.

A cada pausa, cada um fazia a sua própria viagem. Estávamos juntos, sem dúvida, mas aquela experiência foi única e diferente para cada um.

Até que, depois de algumas horas, o Indiano rompeu o silêncio e como porta voz, de forma doce e calma, contemplou a cena e disse:

- Como o mundo é grande! Cabe até nós sentados aqui, conversando em Macia.

No céu a Lua, também nova, parecia abençoar os viajantes. Já os mosquitos reclamavam por seu espaço nesse mundão.

E nós, reconhecemos a hora de voltar pra casa, com um sentimento quase planetário e aquecidos pelo chá de Macia. - Khanimambo.

Lobolo, o casamento tradicional.


Khanimambo - Andando por Maputo, ou até mesmo por Macia, é quase impossível não entrar no meio de um roda de pessoas, celebrando a união de mais um novo casal.

Os noivos dançam, cantam e com seus familiares e amigos festejam a nova vida. Mas, quando olhamos com um pouco mais de atenção, percebemos que essas festas são o final de um longo caminho que teve que ser percorrido.


O rapaz interessado na moça, manda seus amigos à casa da pretendida. Ele não vai pessoalmente, essa tarefa é para o irmão ou primos. Os portadores do recado declaram aos pais da pretendida as vontades do noivo e como sinal de boas intenções deixam lembranças para a família.


Para a moça, normalmente um vestido ou até mesmo um brinco. Para o pai, uma bebida é de bom agrado e para mãe uma capulana ou artesanato.

Os emissários, como são conhecidos, saem de lá com a promessa de receberem em breve uma visita por parte da noiva. Essa visita é que determina o futuro da união.


Depois de cerca de um mês, os emissários, agora por parte da noiva, chegam na casa do noivo e deixam uma lista de pedidos. São pedidos que devem ser cumpridos para que eles possam se casar.


Normalmente a lista é longa, e inclui uma farda completa para o pai, roupas e vestidos para a mãe e avós e caso alguém tenha colaborado na educação da filha, tem direito de fazer parte desta lista e ser reconhecida neste momento.


A lista, principalmente na zona rural inclui também cabeças de gado e alguns mil meticais. Em Maputo e perto de zonas mais urbanas, essa tradição já permanece de forma mais simbólica. Mas, em zonas como Macia, tudo ainda é seguido conforme os ancestrais esperam.


Quando o noivo estiver pronto, ou seja, tudo da lista já comprado e organizado é a hora de uma nova visita à casa da noiva. Não vai pessoalmente de novo, manda emissários ao encontro chamado Lobolo.


Lobolar a filha é entregá-la para sua nova vida. Com todos os pedidos atendidos, não tem mais nada que impeça isso. O noivo de seu jeito, provou suas intenções. A família ficou satisfeita com sua devoção e pequenos agrados. A filha seguiu seu caminho.
Não tem papéis assinados, não tem igreja, apenas a benção dos ancestrais.

A poligamia é a base das relações familiares em Moçambique, ou seja, dependendo das posses o homem repete esse ritual em média 3 ou 4 vezes ao longo da vida.


Quando perguntei para Carla e Júlio, um casal jovem de Macia, ficou claro o quanto o Lobolo é visto de forma diferente para cada geração e para cada gênero.

Ao que parece, assim como esta tradição, tantas outras estão se confrontando diariamente com a modernidade, novos valores e com o questionamento do próprio povo Moçambicano.

As novas raparigas, "ampliaram o seu mundo" por meio dos livros e não querem mais repetir todos os caminhos percorridos pelos pais.

Mas, numa coisa todos concordam e não poupam palavras: a importância da benção dos ancestrais.


- "Estamos vivendo numa terra que tem história e devemos explicações a eles."

Compor a tradição com o mundo novo será um desafio e muitas vezes uma mistura necessária. Serão precisos novos instrumentos, aprender outro ritmo e espero que no resultado dessa mistura, a beleza da música genuinamente africana continue a ser ouvida. - Khanimambo.

A Joana é da família!




Khanimambo - Parei numa venda da Vila de Macia a procura de leite magro. Já faz uns dias que estou nessa batalha e quando entrei na venda do Gigi, percebi que os meus problemas estavam resolvidos.

Uma estante enorme com alimentos, cimento, caixas, materiais agrícolas... enfim, era só ter paciência que em algum lugar por ali estava escondido o meu leite.

Conversa vai e vem e acabei tomando um café na casa do Gigi, nos fundos da venda. Moçambicano, segundo ele estilo coronel. Sua casa tem pé direito alto e móveis espalhados por todos os lugares. Antigamente alí era um depósito de automóveis. Ele com o seu tino empresarial reformou parte do local, construiu sua casa, arrumou sua venda, já construiu uma filial perto do Zimbabwe e ainda reforma carros.

Gigi, tem uma vida de andarilho. Vai sempre de uma comunidade para outra. Um dia quando voltava para casa percebeu que tinha uma visitante ilustre.

O nome dela é Joana, tem mais de 2 metros. No começo ficava sempre escondida entre um carro e outro. Mas com o tempo, Gigi descobriu que Joana é cega e fugitiva de um lago perto de Bilene.

Depois do café fui calmamente levada para conhecer Joana. Estava certa que se tratava da esposa de Gigi ou da filha mais velha.

O susto foi grande, a máquina caiu no chão, comecei a gaguejar até que a Joana começou a se mexer parecendo reconhecer a voz do Gigi.

- Ela é cega mas reconhece minha voz. Faz mais de 20 anos que chamo seu nome. Se eu ficar bem perto, não faz nada! É parte da família!

Sem saber um pouco como lidar com a situação, tirei algumas fotos do imenso crocodilo e disse ao Gigi que voltaria outro dia para conversar um pouco mais com a família, inclusive com Joana. Saí as pressas e nem do leite me lembrei. Vou voltar...
Khanimambo.