sexta-feira, agosto 24

Cheiro de casa


Khanimambo - Chegar a um lugar tão especial não pode ser tarefa fácil.

É preciso um ritual de passagem.

Tomar distância da terra firme e do barulho da cidade para seguir em direção a uma linha tranquilamente deitada no horizonte.

Sentir no caminho o vento forte e gelado, não deixar nada no lugar.

A água fria do oceano Índico bater no rosto e fazer os olhos, a revelia, fecharem.

Calar-se com o barulho do motor.

E então, daí sim: pode-se chegar.

Depois de 40 minutos de barco de Maputo encontrei Macaneta.

Ilha deserta de humanos e povoada de natureza.

Talvez esse tenha sido o sentimento de Cristina, moçambicana de meia idade, que chegou com os 3 filhos pela primeira vez em 1986.

Desde lá, nunca mais deixou de ir.

Nas primeiras vezes a idéia era passar pouco tempo, mas as semanas em Macaneta viram meses e anos. E em 1996, com a ajuda de seu filho Cris, decidiu ser generosa com todos nós e construiu algumas tendas para que outros pudessem sentir Macaneta.

Não é um hotel, nem mesmo uma pousada simples. É uma extensão da casa e da vida de Cristina.

- Não faço propaganda. Apenas peço que quem gostou fale para outra pessoa que sabe que irá perceber esse lugar, sem energia elétrica e sem estrutura.
Cristina

Dormímos em tendas, sobre uma plataforma de madeira. No alto, a proteção e luz de um céu carregado de estrelas, quase dispensava as lanternas.

O almoço e jantar, dependia do que o mar nos trazia.

Dia de lula e caranguejo e noite de peixe.

Na praia, de areia fina, apenas alguns poucos barcos de pescadores, mais castigados pelo tempo do que pelo uso.

Andávamos sem pressa para prestigiar o caminho.

Andar de quem não sabe o que esperar.

Parávamos para fotos, para descansar de tanto relaxar e para aproveitar o sol.

Foi assim, sem destino, que chegamos no canto da ilha: onde o rio encontra o oceano.

- Se andar por aqui, acompanha o rio, depois de fazer as curvas nas dunas, chega no mar.
Cristina

É sempre buscando esse e outros encontros que Cristina volta toda semana para Macaneta.

Depois de construir as tendas e o simples espaço de convivência da ilha, seu filho Cris, faleceu.

Fazia parte do Médicos sem Fronteiras e é a sua foto sorrindo que ilumina a pequena cozinha de Macaneta.

- O Cris mora aqui. Ele está em todo lugar.
Cristina

Macaneta é isso. Um lugar para se lembrar.

Lembrei de uma natuza e beleza que já me esquecia.

Lembrei de que é possivel, nesse mundo, estar em paz e serena.

Lembrei de casa com saudade, mesmo me sentindo tão perto.

Lembrei dos que estão aqui e alí.

Mas principalmente, lembrei dos que estão em todo o lugar.


No domingo, no barco, na hora de partir, acenamos para Macaneta.

Cristina, fez um longo aceno. Não de quem se despede de um lugar, mas de quem dá um até logo as lembranças já com saudade e vontade de um pronto reencontro.

O importante não é a casa onde moramos.
Mas onde, em nós, a casa mora.
Mia Couto

Saudades...

Khanimambo

"Vou historiar a minha vida..."


Khanimambo - Já era cedo e tínhamos que correr para alcançar o dia que a tempo já tinha começado.

Percorremos a estrada nacional até a comunidade de Chimondzo. Lá, o Sr. Salomão Nuvunga nos esperava.

Algumas de suas mulheres cuidavam das crianças, outras terminavam de regar a recente plantação de alface.

Cadeiras no lugar certo, filmadora ligada, o sol como luz natural refletia a mistura de emoção e nervosismo do Sr. Salomão.

Depois de falar seu nome, idade e local de nascimento, historiou sua própria narrativa.

Contou pouco de sua infância. Fazia um esforço para percorrer nas lembranças aquela época. Falou da guerra e de como fugiu para o mato. Com um sorriso, se lembrou do primeiro dia em sua própria machamba.

O Sr. Engenheiro de Chivalene, não esqueceu nenhum detalhe de quando esteve nas minas da África do Sul. Já o Sr.Massukos, depois de 16 anos servindo o exército nacional, terminou por acabar, em Macia, em meio a enxadas e hortícolas.

A Maria, mesmo em Changana, falou na língua universal quando descreveu em detalhes o trabalho da moegeira de milho, que hoje, cuida todas as tardes.

O Domingos, pulverisador da região de Rigoanne, carregou a voz de orgulho para dizer tudo o que já aprendeu com as atividades da associação:

- A vida melhorou. O que aprendemos isolados não vale, tem que aprender junto.


Uma pausa para o almoço e um primeiro olhar para as histórias.

- Eles têm muito para falar. São trajetórias de muita vida.
Custódio, técnico rural.

Custódio, jovem de 24 anos, disse que foi por causa do seu tio, pequeno agricultor, que ingressou na escola técnica agrícola:

- Eu via ele colocar as sementes na terra e depois de dois meses chegava com tomates vermelhos e bonitos. Queria entender essa mágica. Era bonito de ver.


Seu sonho é aprender inglês e as poucas palavras que já aprendeu, ensina a grupos de crianças por onde passa:

- Ensinar é a melhor forma de aprender.


Isso também foi o que disse o Sr. Mupice, presidente da Associação de Magul, que espera ensinar tudo o que sabe aos seus filhos e que assim eles possam saber ainda mais.

Foram dois dias de muita vida, contadas através de histórias.

Casos engraçados, rupturas, caminhos, dores, alegrias de encontros, perdas, surpresas, família, amor ...

Algumas histórias sem começo claro, sem data de nascimento.

Outros sentimentos sem fim definido, como emoções que sumiram no tempo.

Histórias que começam pelo meio e se misturam e dão sentido a dita história do próprio país.

Cada uma, única pela experiência de seu narrador, mas todas juntas, um mosaíco em sintonia com o retrato de um povo.

Coube a mim a escuta.

Abri espaço, tempo e presença na minha própria história, para que a partir de agora, misturada a tantas outras, eu siga ... diferente e sempre em frente.

Khanimambo